Bolinho de Marreco com ora-pro-nóbis

Flávio Trombino, chef do restaurante Xapuri, Belo Horizonte (MG), esteve presente no Festival Cultura e Gastronomia Tiradentes, 20 anos


O interessante numa receita é quando vem acompanhada de uma boa história, agrega valor e nos faz refletir toda a cadeia produtiva da gastronomia, que é muito mais complexa do que a abertura de um restaurante. O chef Flávio Trombino do restaurante Xapuri em Belo Horizonte – MG, é uma dessas personalidades que envolve historia e elaboração de pratos.

Flávio Trombino, chef do restaurante Xapuri, Belo Horizonte

Um dos contos recheados de sabores e peculiaridades Flávio soltou durante Festival Cultura e Gastronomia de Tiradentes, e foi mais ou menos assim: “O Sabará Festival, teria várias atrações culinárias, a minha participação deveria se destacar por fazer alusão ao ícone da gastronomia sabarense. Foram convidados vários chefs, cada um com um tema de prato dos ícones da gastronomia sabarense. A minha missão naquele evento era retratar uma receita que envolvesse a história do ‘João Doceiro’ — o ‘João da Mula’, que é um doceiro que herdou do pai o modo de fazer e vender os doces. Eles são feitos em tachos de cobre no fogão de lenha e vendidos no lombo da mula. São coisas que a gente acha que não existem, mas existem e está até hoje, lá em Sabará”. 

“Baseado no doce e nesse personagem, eu criei uma bebida chamada ‘Burrinho tonto’. Consiste numa canequinha de capuchinho (com alça), sujei a parede da taça com o doce de leite, coei o café bem forte, acrescentei uma dose de cachaça, outra dose de café com espuma de leite. Para decorar um pauzinho de canela, que serve para mexer, tava pronto! Faltando um dia para começar o Festival de Sabará, veio um convite para substituir um colega, cuja participação estaria relacionado com um restaurante local, que criaria o prato e entraria para o Concurso do Festival Sabará. Pensando no regulamento dos critérios para o prato vencedor, sabia que era um voto técnico e outro popular, para avaliar os produtos origem de Sabará usados no prato. Os ingredientes mais importantes de Sabará é a ora-pro-nóbis, a jabuticaba e a banana. O restaurante parceiro era o ‘Aconchego da Roça’. Quando perguntei qual era o prato da casa, descobri que se tratava de um restaurante a quilo. Meu Deus, que fria! O que eu vou criar para um restaurante a quilo sem conhecer o restaurante e o proprietário? Quando soube que no final de semana serviam tira-gosto, foi meu alívio, porque logo pensei no bolinho de banana recheado de carne seca com geleia de pimenta, uma receita de minha mãe. A minha ideia foi acrescentar umas folhinhas de ora-pro-nóbis no recheio de carne seca e trocar a geleia de pimenta pela geleia de jabuticaba”. 

“Fui pra Sabará. No dia seguinte conheci Eugênio, proprietário do ‘Aconchego da Roça ‘. Quando ele contou a história do restaurante, aberto pela mãe dele, uma salgadeira, me convenci de que estava perfeita a minha escolha pelos bolinhos de carne seca”. 

Desafio pouco é bobagem 

“Na abertura do Festival, o prefeito de Sabará contou como nasceu o ‘Festival de Gastronomia’ da cidade, em meados dos anos 80. Os primeiros convidados foram Edgard Mello e Targino Lima Jr. que não eram chefs de cozinha mas, eram amantes da gastronomia e donos de restaurantes. Faziam parte de um grupo, nomeado pelo governo estadual de Minas Gerais, para elaborar um projeto de difusão e preservação da culinária mineira (Projeto Culinária Típica Mineira, de 1985), além disso, participavam da Confraria de Gastronomia da Bernadete Magalhães — ela ministrava os cursos e eles grandes divulgadores da nossa gastronomia, talvez eles foram as pessoas que mais difundiram a gastronomia mineira. Em Sabará, eles conheceram dona Maria do Pompeo, uma senhora que começou a fazer quitutes para sobrevivência pois, tinha sido abandonada pelo marido e teve que criar os filhos sozinha (a história que se repete com as mulheres que precisam sustentar a família). Quando chegaram na propriedade dela viram uma criação de marrecos e falaram: o prato vai ser este! Marreco com ora-pro-nóbis! E foi o prato campeão do 1º Festival de Gastronomia de Sabará, assim contou o prefeito. Pensei: tá feito! Resolvi neste momento mudar a receita e fazer bolinho de banana recheado com marreco e ora-pro-nóbis. Nisso, conheci a farinha da casca da jabuticaba — consiste na casca da jabuticaba desidratada no sol, batida no liquidificador ou processador. Usei essa farinha pra empanar os bolinhos e ficaram pretos como a jabuticaba”.

Jabuticabas

A jabuticaba de Sabará é tão importante culturalmente que, além do Festival da Jabuticaba (ocorre anualmente), quem tem um pé de jabuticaba no quintal tem uma porcentagem de desconto no IPTU, ou seja, quanto mais pés de jabuticabas mais descontos no IPTU. Isso só reforça ainda mais a cultura gastronômica de Sabará. Na época da safra da jabuticaba é comum as pessoas alugarem os pés de jabuticaba do quintal, para consumir a fruta fresca.

“No restaurante do Eugênio, a dinâmica nesse dia era eu, o chef anfitrião e mais três alunos de gastronomia produzir o prato para a foto oficial do Festival. Não é possível que não acharemos marreco nesse lugar cheio de córregos nos sítios. Fomos a busca do marreco — parecia um reality show — todos a caça de um marreco, por todos os lados da cidade, tendo o prato para terminar. Não achamos. Quando de repente, do alto, avistei uma casa com vários marrecos. Batemos à porta: Oh! De casa! Marreco comprado, os estagiários ficaram aflitos com o marreco vivo e perguntaram; “mas a gente vai matar?” Eu:”Vocês querem comer ele vivo?”. Foi uma dinâmica muito interessante, porque eles nunca tinham tido a experiência de abater uma ave. Matamos. Terminamos todo o processo e fizemos, enfim, o Bolinho de Marreco com ora-pro-nóbis.

Bolinho de marreco com ora-pro-nóbis empanado com farinha de jabuticaba

Receita de Bolinho 

O Bolinho de marreco com ora-pro-nóbis empanado com farinha de jabuticaba, trata-se de um salgado. A massa é muito parecida com a massa de coxinha e risólis (mas não coloco o caldo de marreco na massa), uma massa neutra. Vamos usar: farinha de trigo, amido de milho, manteiga de leite. A proporção da receita (é mais ou menos) 700ml de leite; 300g de trigo; 100g de amido de milho; 250g de manteiga. A massa fica bem líquida no início (não se preocupe se vai empelotar), mexa e vai conseguir a consistência, e ficar bem liso, que você consiga abrir para fazer a base do bolinho, com essa massa bem simples.

Vamos preparar a banana da terra assada no forno. Coloco na assadeira banana, manteiga, alecrim e asso até a banana rachar e abrir, vai ficar um pouquinho seca. Numa panela vamos pegar a calda do fundo da assadeira e amassar essa banana (fica com consistência seca). Na panela, frite cubinhos de bacon, cebola bem batidinha — para saborizar essa banana — vai ficar numa consistência dura, que você possa fazer a massa, porque você vai forrar a massa de salgado com a massa de banana. Porque na hora que você morder vai comer duas camadas — um bolo por fora de massa e uma camada interna de banana. 

Aí vou usar o Ragú de marreco: alho, cebola, salsinha, cebolinha, pimenta e especiarias a gosto; ora-pro-nóbis fresco rasgado. Fecho o bolinho com o ragú de marreco e empano com farinha de jabuticaba misturada com farinha de rosca e, depois só na farinha de jabuticaba. Passa no ovo, na farinha e frite. Use a geleia como acompanhamento.

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