Tema apresentado pelo chef Mário Portella, no Festival Fartura – Cultura e Gastronomia de Tiradentes, edição 20 anos. Mineiro de Juiz de Fora, formado em gastronomia pela PUC-MG, pós-graduado em Ciência e Tecnologia de Carnes pelo Instituto de Tecnologia de Alimentos – ITAL de Campinas. Nos dias de hoje, falar de carnes é desmistificar o assunto que carrega tantos mitos e pré-conceitos quando se relaciona a pecuária, ao aquecimento global, desmatamento e controle sanitário. O chef é dedicado a charcutaria, um especialista no assunto de preparação das carnes, ministra cursos por todo o Brasil.
A cidadezinha de Tiradentes (MG), faz parte da carreira do chef Portella desde quando era estudante de gastronomia e viajava para fazer estágio. “É muito bom participar desde então, há sete anos participo do Festival Fartura. A minha história com a carne começa com a curiosidade de estudante, em fazer um presunto cru em casa. Comprei um pedaço de pernil, salguei, coloquei na geladeira achando que faria um presunto cru. Passado alguns meses, o resultado era qualquer coisa que pudesse ser chamado de presunto mas, o resultado final foi carne estragada. Na época, fui estudar sobre carnes e, vi que havia um espaço vazio muito grande, sobre informações desse assunto no Brasil. Falar de carne no Brasil, há sete anos atrás, era totalmente diferente do que falar hoje, porque houve uma evolução muito grande no melhoramento genético dos animais, garantindo melhor qualidade e um mercado mais interessado no setor”, declarou.
Portella, fez pós-graduação em Ciência da Carne, no Instituto de Tecnologia e Alimentos de Campinas – ITAL, e conheceu um outro mundo da carne, as carnes industrializadas. “Muita coisa não poderia existir no absurdo das carnes industrializadas. Por exemplo, qual é a porcentagem de carnes numa salsicha industrializada? Em média, 30% de retalhos composto por cartilagem, osso moído, um pouco de couro. O procedimento é moer a carne com o osso tudo junto – chamado de CMS – carne mecanicamente separado. A nossa legislação tem muita falha, aprova esse procedimento, só que impõe que a salsicha pode ter no máximo 10% de cálcio (osso)”, conta Portella.
Os embutidos são muito consumidos pela população mas, é um alimento carregado de mitos. “Os embutidos como salsicha ou mortadela, em sua maioria contém fumaça líquida na composição. Trata-se de um processo de condensação, através de um defumador normal, onde há madeira em combustão, e passa por um cano que leva esse líquido por outro lado. A indústria usa na massa de carne, na mistura, porque na hora que começar dar cheiro de podre, dá o cheiro de fumaça antes”, explica Portella.
Segundo o chef durante os cursos que ministra, os alunos podem optar por se tornarem veganos ou fazer o próprio embutido. “Dou curso em seis estados por mês e, os meus alunos brincam que saem do curso fazendo seu próprio embutido ou vira vegano, porque, infelizmente não dá para comer o que a indústria alimentícia oferece. A minha conclusão é de que a conta não fecha, porque o quilo da carne do porco em julho (2017) estava custando R$ 6,20, na hora que tira o osso (a perda), o quilo do porco vai para R$ 9,00. Se contabilizar que a indústria mói os produtos, investe em infraestrutura e funcionários, no final, o quilo da salsicha não paga os custos da industrialização. Por isso o empresário recorre a má qualidade do produto pra ter lucro”, opinou.
Segundo o chef, no mundo todo, presunto é considerado derivado do pernil suíno. “Se, eu quero fazer presunto em casa, pega água, do peso da sua água adicione 3% de sal, 2% de açúcar, ervas antioxidantes como alecrim, sálvia, pimenta-do-reino, zimbro, sal de cura; coloque a peça de pernil dentro desse caldo e leve à geladeira por 10 a 15 dias. Passado o tempo retiro e levo para o forno ou para o defumador e deixo assar até essa carne atingir 65º. Tira do forno. Deixe esfriar. Isso é presunto em qualquer lugar do mundo”, orientou Portella.
No Brasil o que se comercializa como presunto é um outro produto totalmente diferente do apresentado no mundo. “A indústria mais uma vez pegou todos os retalhos de carne (todas as sobras) para não terem desperdício e começaram usar uma cola chamada transglutaminase (cola de proteína para colar carne), adicionam a cola com todos os retalhos, colocam numa prensa, levam para cozinhar e vira o que no Brasil é chamado de presunto. Aquele presunto mais caro é adicionado um pedaço de gordura por cima da carne”, ele observou.
O chef revela que o presunto que a indústria oferece é um produto popular de baixa qualidade, uma receita pra dar lucro e que essa é a pior parte do mercado mas, que não dá pra generalizar. “Hoje, temos uma evolução muito grande na produção de embutidos. Tem muito produtor artesanal. Em Belo Horizonte, tem um dos melhores presuntos cru que já comi na minha vida comparado aos presuntos espanhóis de 10 e 12 anos de maturação. É o Presunto Chiari, na cidade de Belo Horizonte, do produtor Carlos Chiari”, disse.
Portella lembra que é muito importante reconhecermos que o Brasil tem hoje um dos melhores gados do mundo. “Anos atrás, tínhamos um animal com carne dura sem qualidade. Hoje temos uma carne boa. Há sete anos atrás saíamos para comprar carne, não boi. Ninguém sabia a raça do boi. Todo o nosso gado era basicamente Zebuíno Nelore. As associações se juntaram para trazer as melhores raças de gado do mundo para o Brasil. Mas os animais não sobreviviam devido ao clima porque tinham uma zona de conforto de calor em relação a temperatura de animais que viviam em temperaturas de 0 a 2º. Quando eram tirados do seu ambiente natural os mesmos tinham estresse e afetava o resultado final. Começaram misturar as raças com Nelore por isso começamos ter carne de muito boa qualidade e evoluiu de uma tal forma que são muito pouco os animais criado através do sistema de confinamento. Então, temos uma carne com muitos benefícios compostos, que fazem bem para a saúde, como o animal criado solto que tem vitamina D do sol e vários compostos antixoxidantes”, detalhou.
Com a evolução das raças dos animais e o avanço na qualidade da carne bovina, a comercialização e preparo das carnes também mudou. “Hoje, os restaurantes não investem mais naquele modelo que o cliente vai para comer até se fartar de carne. Isso não existe mais. O cliente procura uma carne de qualidade, de cortes diferentes para poder comer e sentir o paladar do corte da carne. O meu restaurante, o Osso, trabalha com carne de Angus e não mais a carne de Nelore que se consumia há 10 anos atrás. A distância entre as carnes é tão grande e o prazer de comer a carne mudou o patamar de apreciar uma carne. É muito diferente. Antigamente as carnes eram mais duras e comíamos só picanha porque é macia e tem gordura. Hoje, faço diversos eventos e a picanha não é mais a carne principal do evento”, completou.
No Brasil, ainda se perpetua mitos sobre as carnes, principalmente sobre a carne de porco. Segundo Portella, os brasileiros ainda preservam um pensamento arcaico de que a banha do porco faz mal para a saúde, que entope a artéria; que o porco é um animal doente e que não se deve comer carne mal passada. “O porco é um animal que carrega preconceito durante toda a vida, na história, nas expressões populares — tudo o que dá errado é culpa do porco. Hoje em dia, a vida de um suíno é praticamente igual a nossa. A leitoa pari confinada, amamenta, a cria sai da maternidade, vai para a creche até atingir o peso de 9kg e ser considerado um leitão, depois vira suíno vai para a engorda e abate. Na creche, o pessoal da genética escolhe os animais que vão procriar. Hoje, é possível saber quais doenças o animal terá (pelo mapeamento genético). O animal se contamina durante a vida como nós nos contaminamos. Toda a contaminação do porco vai pro pelo do animal, por isso um animal deve ser devidamente abatido e depilado. Você pode comer a carne cru, que não apresenta perigo. Só que ainda há mitos, é cultural, de geração para geração e as mentiras permanecem”, encerrou Portella.
Receita de salsicha do chef Portella
Sobre fazer embutidos
Sempre que faço um embutido — tudo o que está dentro de uma tripa é considerado embutido — temos vários tipos, uma linguiça fresca (qualquer carne suína/bovina). Todo boi embutido leva na composição dele água (que dá textura). Os melhores embutidos europeus levam 30% do peso de água. Carnes usadas para embutidos: lombo e copa-lombo, água, tempero a gosto, levo pra geladeira, deixo descansar da noite pro dia, no outro dia encho a tripa – isso é linguiça. Se eu pegar a mesma massa que faria linguiça e colocar sal de cura, só que eu, em vez de comer na hora, deixo num lugar mais arejado da Casa (sem ter contato com o sol) a linguiça que era fresca, o vento vai batendo nela e vai secando, e uma semana depois é calabresa. Se eu fizer o mesmo processo com a calabresa, ao invés de deixar pendurada, deixar na geladeira (temperatura média 5º, umidade 85%), vai passar um mês e terei um salame. Então, é tudo muito simples de fazer.
Receita nas palavras do chef
Para a salsicha: 02 cortes de carne: a copa tem 70% de lombo e 30% copa. A copa tem uma proteína, uma emulsão – são duas matérias que não se misturam, então, eu misturo uma terceira que é o gelo. Se quiser, pode misturar o lombo e a copa e o gelo numa batedeira planetária. A mistura vai deixando de ser uma carne moída dura e vai virando uma massa porque a emulsão esta amolecendo e o terceiro ponto vai virando um patê rosa claro – esse é o ponto para fazer salsicha e mortadela – fica rosa clarinho rapidamente e não separa mais. Por isso, quanto mais vermelho é o embutido industrializado, mais corante ele tem na mistura e é prejudicial à saúde.
As tripas
Existem três tipos de tripas naturais. Para a salsicha, o indicado é a tripa de cordeiro. Para a linguiça, é indicado a tripa suína. Para carne bovina, a tripa salsichão. A tripa é vendida salgada. Coloque na água para retirar o sal, troque a água até certificar que saiu todo o sal, tire toda a água da tripa antes de ensacar a carne. Depois de hidratada coloque no canhão ou ensacadeira (utensílio para fazer embutidos). Quando for encher a tripa com a carne, nunca coloque toda a carne no canhão de uma vez, a medida que vai girando o ar sai primeiro. Faça gomos de 30cm, amarre e está pronto. Leve à geladeira e consuma rapidamente porque se trata de um produto fresco. É fácil assim, é natural como toda salsicha deveria ser.